Bahia, Brasil Universal

Salvador, Bahia é a metrópole mais vibrante do planeta, um burburinho que emerge dos rios, ondas, marés, oceanos de música que têm banhado o Brasil e transbordado para o mundo inteiro. A força dessa música, mesmo quando moderna, está na sua proximidade com o passado…

Como vai a Bahia, assim vão todas as tradições musicais profundas do Brasil…e do mundo.

Importantes Primordiais: A península sobre a qual Salvador está situada é como o polegar de uma mão aberta e que se agarra, sendo o que normalmente é pensado como o Recôncavo (um lugar de enorme importância que muitos, se não a maioria, dos visitantes de Salvador, surpreendentemente, nunca chegam a conhecer) então definido pelo dedo indicador curvado. Essa forma de definição se desenvolveu quando produtos agrícolas eram trazidos para Salvador de barco, às vezes fazendo seu caminho primeiro pelo rio Paraguaçu depois de terem sido transportados por terra do sertão até Cachoeira, o rio desaguando na baía em Maragogipe. A cidade da Bahia (como normalmente era chamada na época) estava agachada na baía, composta por um distrito comercial muito menor em área do que é hoje (o aterro aumentou consideravelmente essa área), a região ao redor da seção superior do elevador, e o que agora é chamado de Pelourinho.

Baía Satélite

Grande parte do restante da península foi destinada a plantações de cana-de-açúcar, e espalhados pela mata atlântica estavam inúmeros quilombos; ambos são atestados hoje em nomes de bairros comumente usados na cidade. O bairro de Garcia foi uma vez Fazenda Garcia, e essa denominação ainda é usada hoje para distinguir uma extremidade de Garcia (fim-de-linha) da outra (a extremidade do Campo Grande). Os bairros Engenho Velho de Federação e Engenho Velho de Brotas têm esses nomes por causa dos antigos engenhos que pressionavam o caldo da cana tão laboriosamente extraído dos campos. O bairro de Cabula é nomeado em homenagem a um nkisi (divindade) do candomblé angola (o primeiro candomblé a chegar à Bahia)… cujos ritmos compõem a base para o samba, o que significa que os ritmos aos quais tantos no mundo se balançaram desajeitadamente enquanto o saxofone de Stan Getz se elevava e João e Astrud Gilberto entoavam sensualmente — esse paradigma da sofisticada suavidade brasileira — nasceram nas ásperas senzalas da Bahia. Ironicamente, a versão descalça da senzala era/é muito mais sofisticada do que a versão sofisticada.

Mas os tempos mudaram, e Cabula agora é um bairro de Salvador, lotado e sem grandes características, de classe média a trabalhadora (com bastante candomblé por lá, no entanto), e os Engenhos Velhos de Federação e Brotas são bairros populares em plena atividade (idem quanto ao candomblé); o samba de senzala, o samba chula e o samba-de-roda desapareceram. Uma versão simplificada — o pagode baiano — é ouvido por toda parte em Salvador, mas a verdadeira tradição se extinguiu aqui na grande cidade. No entanto, ela permanece uma força potente no restante de sua terra natal, o Recôncavo propriamente dito, onde ainda é dançada sobre a terra batida, sob a luz da lua quebrada pelas folhas de bananeiras, palmeiras e mangueiras, elevando as almas de seus participantes quase como algo religioso, o que era, e fora dos deuses, ainda é.

Duas Américas Negras

Os Estados Unidos foram palco de uma migração de afro-americanos do interior rural do sul para as cidades do norte, uma mudança que abalou o mundo. Esses migrantes trouxeram com eles diversos elementos de uma música que, em evolução, acabaria por dominar completamente a música da nação e da maior parte do planeta. Uma parte importante dessa história é a interseção das rodovias 61 e 49. Foi nesse local que o bluesman Robert Johnson teria vendido sua alma ao diabo para alcançar o completo e santo domínio de sua guitarra e do seu estilo musical.

O Brasil também presenciou uma migração em massa de pessoas afrodescendentes em busca de trabalho, mas aqui foi da região das plantações de cana-de-açúcar da Bahia para o sul, até o Rio de Janeiro, após a abolição da escravidão em 1888. Essas pessoas também trouxeram sua música, que, em evolução, acabaria por dominar completamente a música da nação… mas, neste caso, foi o samba.

E enquanto o blues original do “delta” permaneceu para trás — pelo menos por algumas décadas — no Mississippi, Alabama, Texas e outros… o samba primordial (samba chula / samba-de-roda) ainda permanece na terra que foi seu berço, o Recôncavo. Há até um cruzamento aqui, dominado não pelo diabo, mas pela divindade africana Exu (que foi confundido — erroneamente, é claro — pelos cristãos com Satanás): Este é o cruzamento da BA (Bahia) 420 (que vai entre as cidades de Santo Amaro e Cachoeira, ambos grandes redutos do candomblé) e da BA 878 (que se desvia da BA 420 e, após alguns quilômetros, segue pela costa interior da baía ao sul até a cidade de Bom Jesus dos Pobres).

Se ao passar por essa junção discreta, mas culturalmente carregada, alguém desacelerar ou parar, provavelmente verá vários despachos — ofertas a Exu — tigelas de barro com charutos, cachaça, aves… Exu é o abridor de caminhos, incluindo entre a terra e os reinos superiores; o guardião que vigia. Como é apropriado que ele presida no início do caminho entre o samba africano primordial da Bahia e a música nacional do Brasil (embora, no passado, a viagem para o Rio fosse feita de barco). E igualmente (pois acreditamos que foi Exu metaforicamente, e não o diabo, que estava também no cruzamento das Rodovias 61 e 49, ou 8 e 1, como alguns dizem) sobre o caminho entre as músicas primitivas do Velho Sul e as músicas nacionais dos Estados Unidos.

O samba primordial da Bahia nasceu a meros passos graciosos de distância de um riso na máscara da morte do poder presumido. Tanto ele quanto a música primordial da América fazem parte, em comum, do arsenal da humanidade não apenas como mecanismos de sobrevivência, mas como mecanismos de superação. Beleza à parte, é aí que reside sua importância.